sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Origem do Direito Administrativo

O nascimento do Direito Administrativo como disciplina autônoma ocorreu do século XVIII para o século XIX com a Revolução Francesa. O regime absolutista que antecedeu à Revolução Francesa não admitia a possibilidade de uma ordem jurídica que pudesse regrar a relação do Estado com os particulares.

Embora não se reconheça um Direito Administrativo pré-revolucionário, não podemos negar a existência, desde tempos remotos, de normas de funcionamento das atividades do Estado. Como exemplos, podemos citar os arts. 26 e 27 do Código de Hamurabi que disciplina os deveres dos oficiais, e no séc. V aC a Lei das XII Tábuas, trazia na Tábua XI questões referentes ao direito público.

Todavia não é possível denominar esse conjunto de normas de Direito Administrativo. O reconhecimento formal de uma disciplina autônoma somente é possível quando ao seu redor existir um conjunto de princípios, postulados básicos, que constituirão o seu alicerce e sobre o qual se erguerá. Com efeito, as normas que até então tratavam das atividades do Estado, não se lastreavam em um conjunto de princípios e postulados que lhes garantisse unidade e funcionamento, muito menos em um arcabouço teórico e doutrinário que lhe proporcionasse sustentação.

Desta forma, concluímos que o Direito Administrativo é fruto do Estado de Direito inaugurado com a Revolução Francesa. Nesse sentido, vale lembrar a afirmação de Oswaldo Aranha
[1] para quem o Direito Administrativo é disciplina “própria do Estado Moderno, ou melhor, do chamado Estado de Direito, porque só então se cogitou de normas delimitadoras da organização do Estado-poder e da sua ação, estabelecendo balizas às prerrogativas dos governantes, nas suas relações recíprocas, e, outrossim, nas relações com os governados”.

A sujeição da Administração ao império da Lei, bem como a necessidade da divisão das funções do Estado por órgãos especializados, independentes e autônomos constituem, segundo Hartmut Maurer
[2], os pressupostos para o desenvolvimento do Direito Administrativo, no sentido moderno, na Alemanha: “Os pressupostos para um direito administrativo no sentido moderno nasceram somente quando, no decorrer do século XIX, se produziu a vinculação à lei da administração. Motivo para isso foi a divisão dos poderes, que requereu regulações de competência, assim como o reconhecimento de direitos fundamentais, que pedia regulações legais para intervenção na liberdade e propriedade do cidadão”.

1.2.1 Surgimento do Direito Administrativo na França

O regime absolutista vigente até a Revolução Francesa não contemplava normas que pudessem disciplinar a atividade soberana do Estado, até então, imune ao controle legal, em suas relações com os particulares. Todo o direito conhecido, até então, tratava, quase que essencialmente, do direito civil, penal e comercial. Desse modo, o novo regime dependia de leis específicas, que fundadas em paradigma diverso do direito privado, pudesse disciplinar a atividade do Estado em relação aos particulares.

Um dos fatores fundamentais foi a adoção da teoria de Montesquieu com a separação das funções de Estado em atividades executivas, legislativas e judiciais, com a conseqüente especialização de tais atividades. Ora, a efetiva especialidade das atividades administrativas fez nascer a necessidade de controle do exercício de tais atividades.

O homem francês pós-revolucionário tinha em sua memória, de forma ainda muito viva, as lutas travadas contra a administração absolutista e certa desconfiança do Poder Judiciário, até então denominado de Parlamento, que no ancien regime, freqüentemente, invadia as atribuições administrativas por meio da atividade jurisdicional
[3]. Além disso, a concepção reinante na França, naqueles dias, era que a submissão dos atos do Poder Executivo ao Poder Judiciário resultaria em violação à separação dos poderes. Nesse sentido, resolveram retirar as atividades administrativas do controle do Poder Judiciário ordinário, no passado ligado ao Poder Real, para que fossem julgadas por uma jurisdição especial, com competência própria e exclusiva para julgar os conflitos oriundos da atividade administrativa. Segundo o pensamento dominante na França pós-revolucionária o juiz ordinário teria como tendência aplicar aos litígios administrativos o direito que lhe era comum, ou seja, o direito civil. O juiz administrativo, ao contrário, mais próximo das questões administrativas aplicaria com maior precisão as regras e os princípios do direito público[4]. No entanto, há quem defenda a tese de que a desconfiança existente contra o Poder Judiciário foi a verdadeira causa da criação da jurisdição administrativa.

O ponto de partida foi a Lei de 16 de 24 de agosto de 1790, que em seu art. 13 dispôs
[5]: “as funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Não poderão os juízes, sob pena de prevaricação, perturbar de qualquer modo as operações dos corpos administrativas, nem citar diante de si os administradores por motivo das funções que exercem”. Posteriormente, essas regras foram reafirmadas pelo Decreto de 16 Frutidor do Ano III[6], que equivale a 2 de setembro de 1795, reafirmando, assim, a desconfiança do francês revolucionário em relação ao Judiciário.

Em um primeiro momento, por força das Leis n. 6, de 11 de setembro, e 7, de 14 de outubro, ambas do ano de 1790, surgiu o sistema do administrador-juiz, onde a própria Administração, por meio de recursos administrativos hierárquicos, julgava os seus atos
[7]. O sistema do administrador-juiz teve vida relativamente curta. Embora mereça o crédito de ser a primeira forma de controle da Administração Pública no regime que se iniciava, é inegável que não seria possível mantê-lo como a única forma de controle da Administração Pública.

No entanto, a criação do Conselho de Estado, por força do art. 52 da Constituição de 22 Frimário do ano VIII, o que equivale a 15 de dezembro de 1799, instituiu na França a denominada jurisdição administrativa, e, como conseqüência lógica, foram sendo criadas normas administrativas ao mesmo tempo em que se fortalecia a jurisprudência administrativa. Na verdade, a jurisprudência do Conselho de Estado e as leis administrativas que se seguiram constituíram o denominado Direito Administrativo
[8].

Dentre as diversas leis que se seguiram à criação do Conselho de Estado, merece destaque a Lei 28 Pluvioso do ano VIII (Lei 28 de 16 de fevereiro de 1800), que organizou a Administração Pública na França.

A criação do Conselho de Estado em 1799 e a Lei n.° 28 de 16 de fevereiro de 1800 constituem o marco original do Direito Administrativo como disciplina autônoma.

1.3 A evolução do conceito de Direito Administrativo – Escolas ou Critérios de definição do Direito Administrativo

A formação do conceito do Direito Administrativo somente foi possível a partir de uma evolução histórica da definição do seu próprio objeto, que se realizou mediante um enorme esforço dos estudiosos ao longo dos anos. Após a Revolução Francesa, diversos autores se empenharam na árdua tarefa de definir o objeto de atuação do Direito Administrativo e, por conseqüência, definir a ele mesmo. No estudo deste processo, podemos observar a adoção de critérios os mais diversos, que, posteriormente, foram denominados de Escolas de Direito Administrativo. A doutrina especializada enumera os seguintes critérios ou escolas que procuraram definir o Direito Administrativo: Escola Legalista, Exegética, Francesa, Clássica, Empírica ou Caótica; Escola do Poder Executivo; Escola das Relações Jurídicas; Escola do serviço público; Escola das Atividades Jurídicas e Sociais do Estado; Escola Negativista ou Residual; Escola Teleológica e Escola da Administração Pública.

1.3.1 Escola ou Critério Legalista, Exegética, Francesa, Clássica, Empírica ou Caótica

A escola ou critério legalista, também conhecida como escola francesa, empírica, exegética, caótica ou clássica, surgiu na França após a Revolução de 1789. Essa escola entendia o Direito Administrativo como a mera compilação das leis que tratassem da atividade do Poder Executivo. Para os arautos dessa escola, o Direito Administrativo tinha por objeto a interpretação das leis e normas administrativas. Negavam-lhe qualquer caráter científico. Para os partidários da Escola ou Critério Legalista, o estudo do Direito Administrativo em um determinado país, resumia-se à leitura e compreensão dos seus textos legais.

Não tardou para que esse critério fosse abandonado, já que a sua principal bandeira, a negativa do caráter científico do Direito Administrativo e sua redução a uma mera ordenação de textos legais, já àquela época era insustentável. Com efeito, um ramo autônomo da ciência jurídica exige além de um conjunto de leis especificas, um tratamento teórico por meio de seus pensadores, jurisprudência especializada e princípios todos dispostos harmonicamente, no sentido de produzir uma unidade de conhecimento distinta e, ao mesmo tempo, capaz de interagir com os demais ramos jurídicos.

Entretanto, a estreiteza da visão dos partidários da Escola Legalista deve ser vista com condescendência, ante o momento histórico e confuso em que viveram os seus precursores.
Foram partidários da Escola Legalista, dentre outros, Barão de Gerando, Macarel, De Courmenin, Gioannis Gioquinto, Posada de Herrera, Manuel Colmeiro. No Brasil, Pimenta Bueno foi um dos entusiastas deste critério
[9].

1.3.2 Escola ou Critério do Poder Executivo

A segunda tentativa de explicação se deu com a escola ou critério do poder executivo. Um dos arautos do Critério do Poder Executivo foi Lourenzo Meucci
[10], que em fins do século XIX afirmou que o Direito Administrativo deve gravitar em torno da idéia do Poder Executivo, devendo tal matéria ser conceituada como o ramo do direito público que disciplina os institutos sociais e atos do Poder Executivo, para a realização dos fins de utilidade pública. Segundo Cretella Júnior[11], em fins do século XIX, a tentativa de conceituar Direito Administrativo era sempre no sentido de “uma teoria dos atos do Poder Executivo, tão só, exaurindo-se, através deste Poder, toda a atividade administrativa”.

Essa escola teve grande aceitação, tendo adeptos até a metade do século XX, como por exemplo, Cirne Lima
[12], para quem o Direito Administrativo é “o ramo do direito positivo que, específica e privativamente, rege a administração pública como forma de atividade; define as pessoas administrativas, a organização e os agentes do Poder Executivo das politicamente constituídas e lhes regula, enfim, os seus direitos e obrigações, umas com as outras e com os particulares, por ocasião daquela atividade”.

É inegável que ao Poder Executivo cabe, como atividade principal, a função administrativa, resultando de tal fato inúmeras ações de ordem administrativa e uma maior incidência do Direito Administrativo. No entanto, é impossível negar a atividade administrativa dos demais Poderes, ainda que em caráter acessório ou atípico. Nesse sentido, a grande quantidade de críticas a esse critério não tardou a surgir, e de forma bem fundamentada. Themístocles Cavalcanti
[13], escrevendo na década de 1950 e criticando os adeptos da Escola do Poder Executivo, afirmou que é “demasiado a definição de direito administrativo às prerrogativas do Poder Executivo”.
O Critério o Escola do Poder Executivo é insustentável nos dias de hoje, pois é impossível negar a atividade administrativa dos demais órgãos e Poderes do Estado. Como exemplo, note-se que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, por força do disposto nos arts. 51, IV, e 52, XIII, da CF/88, exercem competência constitucional para organizar seus serviços e dispor sobre sua administração interna. De idêntico modo, constatamos que os órgãos do Poder Judiciário exercem diariamente uma infinidade de ações administrativas na sua atividade interna, por expressa permissão constitucional (art. 96, I, CF/88).


1.3.3 Escola ou Critério das Relações Jurídicas

Uma outra tentativa de explicar a natureza jurídica do Direito Administrativo foi a chamada Escola ou Critério das Relações Jurídicas. Por esse critério o Direito Administrativo passou a ser considerado como o conjunto de regras por meio das quais são disciplinadas as relações jurídicas entre a Administração Pública e os particulares. Como adepto dessa corrente, Otto Mayer
[14] adepto dessa Escola, afirmou que cabe ao “Direito Administrativo regular as relações que nascem entre o Estado-administrador e seus súditos”.

A crítica unânime em relação a essa Escola é a sua própria imprecisão, pois outros ramos do direito também se prestam a disciplinar as relações jurídicas entre a Administração e os administrados, como, por exemplo, o direito tributário, processual, constitucional e ambiental.

1.3.4 Escola ou Critério do Serviço Público

O ponto fundamental do pensamento da Escola do Serviço Público foi o julgamento do Tribunal de Conflitos que em 1873 definiu a competência da jurisdição administrativa para conhecer e julgar o caso Blanco. Por essa época, a distinção entre a competência da justiça comum e da justiça administrativa se fazia com fundamento na classificação dos atos de império e atos de gestão. Segundo o pensamento dominante da época, os atos de império eram aqueles que o Estado praticava, e somente ele, no uso de prerrogativas de autoridade, impondo-o unilateralmente aos cidadãos, independentemente de pronunciamento judicial. Estando, dessa forma, sujeitos à jurisdição administrativa. Por outro lado, os atos de gestão eram aqueles praticados no exercício de suas atividades, sem qualquer privilégio, agindo no uso de prerrogativas comuns a qualquer cidadão, na conservação e realização de seus serviços.

Era natural naquele tempo a definição da competência entre a justiça comum e a justiça administrativa, pois a própria concepção de ação estatal estava assentada na idéia de uma dualidade estatal que se expressava pela concepção dos atos de império e atos de gestão. O Estado, ora agia como pessoa pública dotada de prerrogativas e supremacia exercendo puissance publique quando então os seus atos estavam sujeitos ao Direito Administrativo, ora agia como pessoa privada, quando então igualava sua ação ao cidadão comum, agindo sob regras de direito privado
[15].

Com o julgamento do Caso Blanco, em 1873, e de outros que lhe seguiram, surgiu a noção de serviço público como novo critério para definição das competências dos Tribunais Administrativos, abandonando o incerto e falho critério da teoria dos atos de gestão e de império. O Caso Blanco refere-se ao julgado do Tribunal de Conflitos, que em 08 de fevereiro de 1873 definiu a competência da jurisdição administrativa para processar e julgar a ação de indenização em que a menina Agnès Blanco era a autora. Agnès Blanco sofrera um acidente com severos danos físicos causados por uma vagonete da manufatura de tabacos, na cidade Bordeaux, explorada pela municipalidade.

Ao Tribunal de Conflitos, criado em 1872, compete decidir os conflitos de competência entre a jurisdição administrativa e comum. Nesse caso, o Tribunal de Conflitos considerou que o dano decorrente advinha de um serviço público, portanto, a competência caberia à jurisdição administrativa. A partir de então, o tema serviço público, já de importância inquestionável, passou a dominar o cenário do Direito Administrativo na França, tendo sido de enorme influência na jurisprudência francesa.

Considerando que o Tribunal decidiu o conflito jurisdicional a partir do critério do serviço público, Leon Duguit
[16] passou a sustentar a tese de que o serviço público estava no centro do Direito Administrativo e do próprio Estado, aliás, para o renomado autor francês, o Estado não passa de uma corporação de serviços públicos. Com tal pensamento e como uma das tentativas de explicar o Direito Administrativo, foi emprestado ao tema um relevo demasiado, e com isso, inaugurou-se a Escola do Serviço Público, também denominada de Escola de Bordeaux.
Na tentativa de explicar o objeto do Direito Administrativo, Leon Duguit
[17] afirmou que “serviço público é toda atividade cujo cumprimento é assegurado, regulado e controlado pelos governantes por ser indispensável à realização da interdependência social e de tal natureza que não pode ser assumido senão pela intervenção da força governante”. Tal conceito, de ordem eminentemente sociológica, chegou a confundir a própria noção de Estado com a de serviço público quando o autor afirmava que o Estado era uma corporação destinada à prestação de serviços públicos.

Gaston Jèze, não obstante ser um defensor da Escola do Serviço Público, trilhou por outro entendimento. Para ele a organização estatal é conseqüência necessária para o desempenho da atividade denominada serviço público. Na conceituação de Jèze
[18], o serviço público é essencialmente uma atividade necessária a satisfação de necessidades coletivas: “Dizer que, em determinada hipótese existe um serviço público, equivale a afirmar que os agentes públicos, para dar satisfação regular e contínua a certa categoria de necessidades de interesse geral, podem aplicar os procedimentos de direito público, é dizer, um regime jurídico especial, e que as leis e regulamentos podem modificar em qualquer momento a organização e seu funcionamento”. O pensamento de serviço público, como atividade de interesse geral a ser prestada sob um procedimento de direito público, prevaleceu na jurisprudência e doutrina francesas.

Outro passo importante no pensamento de Jèze
[19] foi a discordância de que toda a atividade estatal de satisfação de necessidades coletivas podia ser reduzida ao conceito de serviço público. Expressamente o autor afirma que “Em resumo, o serviço público e um procedimento técnico – e não o único – com que se satisfaz as necessidades de interesse geral”. Mesmo reduzindo o conceito de serviço público proposto por Duguit, Jèze ainda adotava ainda um conceito amplo demais, confundindo serviço público com o próprio Direito Administrativo. Em sua famosa obra Princípios Gerais do Direito Administrativo, Gaston Jèze[20] afirma que “o direito público administrativo é o conjunto de regras jurídicas relativas aos serviços públicos”. Esse conceito sintetiza o pensamento da escola do serviço público, para a qual o Direito Administrativo é o conjunto de regras que disciplina a prestação dos serviços públicos pelo Estado.

De todo modo, a Escola do Serviço Público fez um enorme sucesso e, em um primeiro momento, conquistou diversos adeptos. Na segunda metade do século XX, na Argentina, Rafael Bielsa
[21] conceituou Direito Administrativo sob influência de Duguit como: “Conjunto de normas positivas e de princípios de direito público de aplicação concreta a instituição e funcionamento dos serviços públicos, sob controle judicial e administrativo”. Na Itália, o mesmo pensamento foi adotado por Zanobini[22] que definia serviço público como a atividade do Estado, destinada à satisfação dos interesses da coletividade. No Brasil, Themístocles Cavalcanti[23] conceituou Direito Administrativo como “o conjunto de princípios e normas jurídicas que presidem ao funcionamento das atividades do Estado, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos, e às relações de administração com os indivíduos”.

Por fim, a partir dos anos 50 do século XX, a noção de que o serviço público era ponto fundamental do Direito Administrativo, começou a perder o sentido. Os autores se referiam à chamada crise do serviço público, conforme ensinamento de Oswaldo Aranha
[24].
Os fundamentos dessa mudança foram: a) a popularização da gestão privada de serviços públicos; b) as incertezas sobre a definição de serviço público; e c) a hesitação da jurisprudência, segundo Jean Rivero
[25]. Para o autor francês, a noção de serviço público a uma atividade necessária à satisfação do interesse geral que o Estado assume como de sua responsabilidade, afirmando que “serviço público é uma forma de ação administrativa em que uma pessoa pública assume a satisfação de uma necessidade de interesse geral”. Esse posicionamento reducionista do conceito e alcance da noção de serviço público encontrou adeptos em diversos países, tendo Gabino Fraga[26], no México, escrito em 1948 que “o conceito de serviço público sustentado pela doutrina francesa é uma simples construção doutrinária que não corresponde ao que na realidade se conhece com o nome de serviço público. O conceito de serviço público coincide com o conceito vulgar ou popular do mesmo e, em conseqüência, doutrinariamente deve restringir-se à atividade concreta mediante a qual se presta um serviço generalizadamente de caráter econômico ou cultural”.

Como fundamento na necessidade de reduzir o conteúdo da noção de serviço público, Rivero afirma que a Administração não se limita a gerir serviços públicos e que realiza diversas atividades administrativas que não se inserem no conceito atual de serviço público, e ainda, se dedica ao desempenho de atividades econômicas em carater privado. Com efeito, atividades como fomento, polícia administrativa e intervenção na propriedade privada, constituem atualmente temas de grande relevância para o Direito Administrativo, pois se destinam ao bem estar da coletividade, mas é corrente a noção de essas atividades não constituem serviços públicos. Ademais, o Estado muitas vezes tem buscado na realização de atividade privada a satisfação de interesses coletivos, mediante a exploração de atividade econômica (art. 173 CF/88).

A conclusão a que se chega é a da complexidade histórica e jurídica da expressão serviço público. No entanto, é possível perceber uma evolução do conceito de serviço público trazido por Leon Duguit, para quem o serviço público era a própria razão de ser do Estado; posteriormente reduzido ao conjunto de atividades do Estado regradas pelo Direito Administrativo, com o pensamento de Gèze e Vedel; e nos dias atuais, onde o conceito de serviço público passa a ser considerado como uma das atividades materiais da Administração Pública.

A primeira crítica que se faz a essa escola é a abrangência da noção que Lèon Duguit dá ao serviço público, para quem toda atividade do Estado constitui prestação de serviço público, fazendo com que até o Judiciário e o Legislativo sejam abrangidos pelo conceito de serviço público ao lado de serviços públicos propriamente ditos, como a saúde e a educação. Uma segunda crítica cinge-se ao conceito de Jèze, que reduz toda atividade da Administração Pública à prestação de serviço público, negando as demais atividades administrativas diversas do serviço público.

Por fim, cumpre ressaltar que a imprecisão do conceito de serviço público torna difícil a abordagem do tema. Com efeito, sendo o próprio tema serviço público de difícil definição, não é inteligente usá-lo como o cerne do conceito de Direito Administrativo.

1.3.5 Escola ou Critério das Atividades Jurídicas e Sociais do Estado

Por esse critério, alguns autores tentam definir o Direito Administrativo a partir das atividades jurídicas não contenciosas exercidas, obrigatoriamente, pelo Estado, isto é, as atividades materiais, bem como o sistema de organização do Estado para o desempenho dessas atividades. O critério ou escola das atividades jurídicas e sociais do Estado procura definir o Direito Administrativo por um elemento objetivo, o conjunto de atividades materiais, e por um elemento subjetivo, o conjunto dos órgãos.

No Brasil, alguns autores importantes como Mário Masagão
[27], adotaram o critério das atividades jurídicas e sociais do Estado para definir o Direito Administrativo, afirmando que o Direito Administrativo é o “conjunto dos princípios que regulam a atividade jurídica não contenciosa do Estado e a constituição dos órgãos e meios de sua ação em geral”. Em sentido semelhante Cretella Júnior afirma ser o Direito Administrativo o “ramo do direito público interno, pertinente às atividades das pessoas jurídicas públicas, quando perseguem interesses públicos ou o ramo do direito público interno que regula a as atividades das pessoas jurídicas públicas e a instituição de meios e órgãos relativos à ação dessas pessoas”.

A crítica que se faz ao critério das atividades jurídicas e sociais do Estado é a ausência de precisão na definição do objeto do Direito Administrativo, pois nem todas as atividades das pessoas públicas são regidas pelo direito administrativo, como por exemplo, as atividades industriais e comerciais das empresas estatais.

1.3.6 Escola ou Critério Negativista ou Residual

Para essa corrente, as atividades do Estado podem ser utilizadas para definir o objeto do Direito Administrativo. Assim, excluída a atividade judiciária e a legislativa, o resíduo é o objeto do Direito Administrativo, ou seja, tudo aquilo que não é legislação ou jurisdição, por certo, será Administração Pública. No Brasil, Tito Prates da Fonseca
[28] adotou tal posicionamento para definir Direito Administrativo como “a disciplina jurídica reguladora da atividade do Estado, exceto no que se refere aos atos legislativos e jurisdicionais, à instituição de órgãos essenciais à estrutura do regime, e à forma necessária da atividade destes órgãos”.

A crítica a esse critério é semelhante àquela realizada em face do critério do Poder Executivo, pois, ao definir o Direito Administrativo a partir de um critério negativista ou residual, esqueceram os seus teóricos das atividades administrativas exercidas pelo Poder Judiciário e Legislativo.

1.3.7 Escola ou Critério Teleológico

Os adeptos do critério teleológico procuram definir o Direito Administrativo a partir da idéia dos fins do Estado, de modo que se possa conceituá-lo como o ramo do direito público que regula a ação do Estado na realização dos objetivos de utilidade pública.

Tal critério fora previsto por Vittorio Emanuele Orlando em seu Tratado Completo do Direito Administrativo Italiano, tendo alcançado grande aceitação à época. No Brasil Oswaldo Aranha
[29] foi o mais famoso adepto da Escola ou Critério Teleológico afirmando que o Direito Administrativo é “tão somente a forma de ação do Estado-poder, quer dizer, a ação de legislar e executar, e a sua organização para efetivar essa forma, quer dizer, os meios de sua ação”.

No entanto, a Escola ou Critério Teleológico, segundo Cretella
[30], peca pela imprecisão da expressão “fins do Estado” e, principalmente, pelo fato de que o Estado é meio e não fim em si mesmo.

1.3.8 Escola ou Critério da Administração Pública

Atualmente a escola ou critério da administração pública é aquela que parece mais aceitável para explicar o conceito e conteúdo do Direito Administrativo. Por certo, a Escola ou Critério da Administração Pública procura definir o Direito Administrativo a partir de seu aspecto formal, subjetivo ou orgânico, como o conjunto de órgãos, entidades e agentes públicos, e de seu aspecto material, objetivo ou funcional, como o conjunto de atividades do Estado que de forma direta, concreta e imediata realiza os interesses públicos.

A adoção da Escola da Administração Pública permite estabelecer um conceito e objeto para o Direito Administrativo. Ora, sendo a Administração Pública o conjunto de órgãos, entidades e agentes públicos (aspecto formal), bem como o conjunto de atividades a seu cargo (aspecto material), podemos pensar no Direito Administrativo como o ramo do direito que trata da organização dos órgãos, entidades e agentes públicos e da realização de suas atividades, como meio de realizar de forma direta, concreta e imediata os interesses públicos.

Com efeito, por essa Escola procuramos definir o Direito Administrativo como o ramo do direito que rege a atividade administrativa, seja tal atividade realizada pelo Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Considerando que a atividade administrativa está presente em todos eles, embora com maior intensidade no Executivo – atividade típica – entende-se que todos os Poderes exercem atividade administrativa. Portanto a todos é aplicado o Direito Administrativo.


[1] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968, v. I, p. 61.
[2] MAURER, Hartmuter. Direito administrativo geral. 1ª ed. brasileira. São Paulo: Manole, 2006, p. 17.
[3] WALINE, Marcel. Traité élémentaire de droit administratif. 6ª ed. Paris: Recueil, 1952, p. 45.
[4] RIVERO, Jean. Droit administratif. 3ª ed. Paris: Dalloz, 1965, p. 18.
[5] Tradução livre de: “Les fonctions judiciaires sont distinctes et demeureront toujours séparées des fonctions administratives. Les juges ne pourront, à peine de forfaiture, troubler de quelque manière que ce soit les opérations des corpos administratifs, ni citer devant eux les administrateurs pour raison de leurs fonctions”.
[6] O calendário republicano, instaurado pela Revolução Francesa em 24/11/1793, teve início no dia 22/09/192 (data da nova Constituição). O ano era dividido em 12 meses de 30 dias cada. Eram eles: Vendemiário (mês da vindima) de 22 de setembro a 21 de outubro; Brumário (mês das brumas) de 22 de outubro a 20 de novembro; Frimário (mês do gelo) 21 de novembro a 20 de dezembro; Nivoso (mês das neves) 21 de dezembro a 19 de janeiro; Pluvioso (mês das chuvas) de 20 de janeiro a 18 de fevereiro; ventoso (mês dos ventos) de 19 de fevereiro a 20 de março; Germinal (mês da semeadura) 21 de março a 19 de abril; Floreal (mês da floração) de 20 de abril a 19 de maio; Prairial (mês das pradarias) de 20 de maio a 18 de junho; Messidor (mês das colheitas) de 19 de junho a 18 de julho; Termidor (mês do calor) de 19 de julho a 17 de agosto; e Frutidor (mês dos frutos) de 18 de agosto a 16 de setembro. Segundo Celso Antonio in Curso de Direito Administrativo (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 39, nota 14), o calendário republicano perdurou por pouco mais de 12 anos. O calendário gregoriano foi restabelecido por Napoleão em 31/12/1805, com vigência a partir de 01/01/1806, pois a revolução já havia sucumbido com o golpe de 18 brumário do ano VIII (09/11/1799), com a ascensão de Napoleão ao trono.
[7] VEDEL, Georges. Droit administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1958, p. 40.
[8] Cf MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 51.
[9] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, v.I, 2002, p. 7.
[10] MEUCCI, Lorenzo. Instuzione di diritto amministrativo. 4ª ed. Turim: Fratelli Bocca, 1898, p. 3.
[11] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, v.I, 2002, p. 8.
[12] LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 3ª ed. Porto Alegra: Sulina, 1954, p. 19 e 26.
[13] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Curso de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1961, p. 20.
[14] MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. Buenos Aires: De Palma, 1949, v. I, p. 19.
[15] LABADÈRE, André de. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: LGDJ, 1953, p. 39.
[16] DUGUIT, Leon. Les transformations du droit public. Paris: Armand Colin, 1913, p.52.
[17] DUGUIT, Leon. Manuel de droit constitutionel. Paris: Fontemoing et Cie. Editeurs, 1911, p. 122.
[18] JÈZE, Gaston. Princípios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1948, v. II, p. 4.
[19] JÈZE, Gaston. Princípios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1948, v. II, p. 18.
[20] JÈZE, Gaston. Princípios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1948, v. II, p. 1.
[21] BIELSA, Rafael. Derecho administrativo. 4ª ed. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, v. I, p. 5.
[22] ZANOBINI, Guido. Corso de dirito amministrativo. 5ª ed. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1947, v. I, p. 14.
[23] CVALCANTI, Themístocles Brandão. Curso de direito administrativo. 6ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1961, p. 23.
[24] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968, v. I, p. 146.
[25] RIVERO, Jean.º Droit Administratif. 3ª ed. Paris: Daloz, 1965, p. 381. Tradução livre de “Le service publique est une forme de l’action administrative dans laquelle une personne publique assume la satisfaction d’um besoin d’intérêt général”.
[26] FRAGA, Gabino. Derecho administrativo. 4ª ed. Cidade do México: Porrua, 1948, p. 19.
[27] MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Max Limonad, 1959, v. I, p. 25-33.
[28] FONSECA. Tito Prates. Lições de direito administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943, p. 29.
[29] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, v. I, p. 173.
[30] CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2002, p. 12.

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